NOSSA HISTÓRIA
Ilha da Marambaia com suas belezas
O primeiro documento formal da posse de Marambaia foi registrado em 1856,
em nome do comendador Breves, que veio a falecer em 1889, passando
a região para sua viúva.
O COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS DA FAMÍLIA SOUZA BREVES E SEUS CATIVOS*
O tráfico ilegal de africanos. investiram nesse comércio até quando
puderam, inclusive defendendo politicamente a manutenção do ilícito trato e
mantendo fazendas destinadas à recepção de africanos recém-chegados. A defesa
do tráfico talvez tenha sido o maior ponto de convergência entre os
comendadores. Ela unia liberais e conservadores, que embora utilizassem
estratégias diferentes, mostravam-se lado a lado ao insistirem na continuidade
do tráfico. Os dois irmãos vivenciaram um mesmo tempo de forma bastante
diferente, mas estiveram juntos, pelo menos até 1850, ao apostarem na
ineficácia da nova lei antitráfico decretada em setembro daquele ano. Ao lado
da insistência no comércio negreiro, os Souza Breves são conhecidos por
possuírem, durante o século XIX, uma imensa fortuna, alicerçada basicamente em
terras e escravos.
A conformação de uma das maiores fortunas do Brasil imperial,
exemplificada pelos imensos domínios territoriais e humanos espalhados pela província
do Rio de Janeiro, não se explicaria apenas pelas toneladas de café exportadas
das fazendas da família Breves. Apesar de, no início da década de 1860, os
Breves produzirem, sozinhos, mais de 1,5 % de todo o café exportado pelo
Brasil,
1 as maiores
fortunas do período não foram construídas nas plantações brasileiras. Como
mostraram Fragoso e Rios, o capital usurário representava a mola mestra na
construção das grandes fortunas imperiais, revertidas, quase sempre, em
escravos e terras.
2 No caso dos Breves,
uma atividade em especial alicerçou, durante a primeira metade do século XIX, a
fortuna dos comendadores: o tráfico ilegal de africanos. O comércio negreiro,
quando ainda permitido pelas leis brasileiras e internacionais, já era
atividade de alto risco. As perdas de capitais investidos poderiam ser totais.
Entretanto, apesar dos riscos, a alta lucratividade do negócio motivava o
empreendimento em escala atlântica.
3 Com a ilegalidade do comércio de
africanos, estabelecida pela lei de 7 de novembro de 1831, e ratificada quase
20 anos depois por uma nova lei, em 1850, os riscos que já eram elevados
aumentaram. Na década de
1850, apesar de todo o empenho das autoridades brasileiras em por um ponto
final no comércio de almas entre a África e o Brasil, o tráfico continuava
motivado, especialmente, pelo enriquecimento atrelado ao sucesso do
empreendimento negreiro.
Durante a ilegalidade, a repressão, posta em prática pelas autoridades,
e a necessidade de agenciar capitais e redes de relações atlânticas afastavam
os pequenos comerciantes do lucrativo trato, garantindo o mercado aberto apenas
para aqueles que possuíssem capitais suficientes para investir no comércio
clandestino.
4 No Brasil os
irmãos Breves representaram com exemplaridade a face dos novos agentes
envolvidos no tráfico de africanos durante a ilegalidade. Como veremos, a
família Breves esteve atrelada aos negócios negreiros desde pelo menos meados
dos anos de 1830. Pesquisas sobre o tráfico são categóricas em afirmar que
durante a segunda metade da década de 1830 o comércio negreiro entre o Brasil e
a África voltou a tomar força.
5 Foi justamente
nessa época que os Souza Breves passaram a atuar no tráfico de africanos.
Interessante notar que não estavam no comércio negreiro antes da ilegalidade,
pelo menos não os encontramos nas listagens de traficantes atuantes na Praça do
Rio de Janeiro até o início da década de 1830.
6 Caso estivessem
envolvidos nos negócios do tráfico, antes dessa data, certamente ainda não
gerenciavam o empreendimento negreiro. Os irmãos Breves pareciam inaugurar e
bem representar o rol dos novos personagens e das novas estruturas montadas
para receber os sujeitos vindos da África durante a ilegalidade do comércio
negreiro.
Estudos demonstram como, a partir da repressão inglesa, o infame
comércio mudara nas duas margens do Atlântico.
Na África, o
deslocamento dos embarques de escravos do litoral de Luanda, para o norte de
Angola ou para a Costa Oriental, se tornara frequente, principalmente
após a abolição do tráfico nas colônias portuguesas em 1836.
7 - No Brasil os desembarques também foram reordenados para fugir da repressão. As praias litorâneas, mais afastadas do controle do Estado, passaram a acoitar os indivíduos traficados. Nelas, novas estruturas foram edificadas para receber os africanos que continuavam chegando em números crescentes na década de 1840. Novamente os comendadores Breves exemplificam e dão sentindo a reordenação do tráfico. Eram nas suas propriedades do litoral sul fluminense que parte dessa estrutura funcionava, pelo menos até os primeiros anos da década de 1850. Não acreditamos que todo esse sistema surgiria sem o emprego de grandes capitais gerenciados em uma ampla rede comercial. Da mesma maneira, não era apenas um novo dispositivo jurídico que transformaria o tráfico em uma atividade ilegal aos olhos dos fazendeiros e da própria sociedade brasileira. Sabemos que as leis são construídas nos embates políticos e sociais de uma época, quase sempre exemplificando interesses e perspectivas diferenciadas. Nesse sentido, a ilegalidade do tráfico não estava dada na década de 1830, os interesses e as perspectivas estavam dispostos nas discussões no Parlamento brasileiro e na sociedade de época. Iniciaremos nossa análise evidenciando mais detidamente o envolvimento dos Souza Breves com o tráfico de africanos.
Acompanharemos os casos de
desembarques de “negros novos” nas margens das suas fazendas litorâneas, no mar
de Mangaratiba e de Angra dos Reis.
Paralelamente, investigaremos as estruturas das fazendas
de Santa Rita do Bracuhy e da
Marambaia.
Embora tenhamos uma avaliação tardia dessas propriedades, poderemos perceber os resquícios daquelas estruturas construídas para receber os africanos traficados na ilegalidade.
8- Certamente teremos uma imagem um pouco distante do fim do
tráfico nessas fazendas. Entretanto, observaremos como estavam organizadas, ou
mesmo desorganizadas, as propriedades litorâneas dos Breves no pós 1850.
Acreditamos que, entre a década de 1830 e o início dos anos de 1850, elas passaram a suprir o mercado depois da desarticulação do Valongo e das demais estruturas de recepção dos negreiros que ancoravam na margem brasileira do Atlântico.
Conciliando os negócios do tráfico com as trajetórias individuais dos últimos africanos reduzidos à condição de cativos, encerrarmos nossa narrativa analisando a conformação da escravaria de Joaquim Breves, a presença dos últimos cativos africanos das suas propriedades.
9- Para isso, analisaremos os perfis dos escravos falecidos nas fazendas do comendador, entre 1865-1875.
No litoral africano, os padrões de abastecimento do tráfico atlântico de escravos se alteraram significativamente a partir da segunda década do século XIX.
A repressão inglesa na África fez com que os traficantes do litoral mudassem suas estratégias de comércio. O embarque no continente africano deslocou-se de Luanda e dos demais portos centrais da região Centro-Sul para locais mais afastados do litoral, como o norte de Angola e as ilhas da África Oriental.
Os embarques dos portos de Moçambique, Inhambane e
Quelimane cresceram significativamente naquele momento, seguindo a tendência de
reestruturação do tráfico atlântico de africanos na década de 1830.
10 No Brasil, a partir da Lei de 1831, o tráfico também se modificou, principalmente em termos estruturais.
Com o comércio negreiro considerado uma atividade ilegal, consequentemente, o mercado do Valongo, responsável por receber e redistribuir os escravos pelas fazendas fluminenses, foi fechado, pairando durante poucos anos um vazio sobre onde e como seriam recebidos os escravos que continuariam a vir da África após 1831.
No entanto,
rapidamente novos agentes entrariam no ilícito comércio. E com eles novas
estratégias para burlar a lei e redefinir os mecanismos de um comércio
juridicamente condenado. Ao que tudo indica, rapidamente foram articulados
novos portos de desembarque. No caso do Rio de Janeiro, as praias afastadas ao
norte e ao sul da Corte foram os locais escolhidos para receber os africanos.
Novos agentes também entraram nesse lucrativo comércio, já em meados dos anos
de 1830, com destaque para os fazendeiros fluminenses.
Provavelmente os Breves despontaram nesse comércio ainda na década de
1830, sendo um dos primeiros agentes a se lançarem na atividade negreira.
Nos litorais das diversas praias afastadas, os desembarques recomeçavam
e passavam a contar com a ingerência dos antigos senhores de escravos e
fazendeiros de café, sedentos pela mão de obra africana e pelos altos lucros
desse tipo de comércio. Em 1830, no comprovante de concessão e registro da Ordem da Rosa
atribuído a Joaquim Breves, encontramos, além do nome completo do
fazendeiro, uma referência bastante importante: comerciante de escravos.
11 A Ordem lhe foi
atribuída em um momento conjuntural no qual o envolvimento com o tráfico não
mancharia a trajetória de Joaquim, nem de outros sujeitos atrelados ao comércio
negreiro, alguns deles, inclusive, se tornariam políticos proeminentes durante
o Segundo Reinado. Entretanto, não podemos afirmar que Breves gerenciasse a
finalização do comércio atlântico de africanos no início de 1830.
O futuro comendador poderia ser apenas mais um dos agentes envolvidos nos
últimos desembarques, antes da Lei de 7 de novembro de 1831, como também era
possível que estivesse reorientando os negócios negreiros inter-provinciais no
Brasil. O que podemos afirmar com precisão é que os negócios negreiros, legais
ou não, marcaram logo de início a trajetória dos Souza Breves, assim como
tiveram uma importância singular na conformação das suas fortunas.
TRÁFICO SERRA ACIMA
RUGENDAS ESCRAV.SEC XIX- VALE DO PARAÍBA
PERTENCENTES A FAMÍLIA BREVES.
FAZENDA DE ENGORDA DA ILHA DA MARAMBAIA
12 Em 1837, os investimentos
da família Breves passavam a se relacionar diretamente aos negócios do tráfico. Conjuntamente com
o crescimento das plantações de café no Vale do Paraíba fluminense, os
comendadores começavam a investir no lucrativo comércio de africanos. Nesse
mesmo ano, o presidente da Câmara de Mangaratiba, em Ofício ao Governo do
Império, evidenciava que:
Em 10 de Janeiro [de 1837]
[...], por aqui apreendido pelo Juiz de Paz deste distrito o patacho que se diz
ser portuguez e que se denomina União Feliz ter-se empregado desde 1835 no
ilícito, imoral, e desumano trafico da escravatura, e que acabava de verificar
um desembarque de africanos no lugar onde fora apreendido e porque tivesse
ingerência nessa embarcação Joaquim José de Souza Breves...
13 segundo a Câmara de Mangaratiba, o então comendador
não era apenas um exímio comprador de indivíduos reduzidos ilegalmente à
escravidão. Mais do que isso, possuía ingerência sobre a embarcação negreira
que cruzava o Atlântico nas rotas da ilegalidade.
Certamente o empreendimento traficante contava com um apoio logístico
para o embarque na África e o desembarque no Brasil. Os negócios da família
Breves movimentavam uma ampla rede comercial nas duas margens do Atlântico,
envolvendo outros indivíduos de destaque na sociedade oitocentista.
Entretanto, a gerência desse
empreendimento, no lado brasileiro da costa, estava nas mãos de Joaquim Breves.
E não foi pequeno o seu investimento nessa empreitada. Prova disso é que
Joaquim levou até as últimas consequências a viabilidade dos seus negócios,
enfrentando, inclusive, o Estado imperial.
Certamente o presidente da Câmara de Mangaratiba não estava entre os
pares de Breves, tanto que continuou sua denúncia sobre a audácia do futuro
comendador, de continuar no ilícito trato a qualquer custo:
[...]
e conhecendo este [Joaquim Breves] não poder corromper o juiz de paz então em
exercício [...] de viva força a senhorar-se [sic] do mesmo Patacho e do [...]
que por cautela estaria depositado no Forte da Guia, e fazê-lo de novo navegar
afim de transportar talvez outro carregamento de infelizes, e para esse fim mandou engajar em serra acima gente mercenária da mais
ínfima classe, a maior parte seus dependentes os quais armados de diversos
modos descerão efetivamente e em sua casa e na de seus protegidos se acoitarão
subindo o seu[...] a 100 ou mais como se
manifesta no documento junto marcado em [...] e porque este indivíduo reconhecesse
a dificuldade da empresa vista da vigilância a parte na autoridade a quem
diretamente pertencia aconselhar e precaver este atentado, disperadiu-se [sic]
por então da empresa, e mandou retirar esse indivíduo esperando ocasião mais
oportuna para por em execução o seu intento, quando com certeza de bom êxito
pudesse efetuar o que premeditará [...] Por [...] rivalidade e mesmo por
vingança Joaquim José de Souza Breves, Exmo. Sr. ameaça a huma povoação
inteira, espalhou o terror entre os habitantes do município e o que mais [...]
disso se vangloria, e impune e audaz, passe entre nós. Ilmo. Homem que se [...]
a mandar vir de Serra Acima, huma quantidade de gente armada para cometer um
atentado de tal natureza, é capaz de praticar outros mais [...] e a vista de
hum tal procedimento authorizado está para cometer quantas desvarias conceber
em sua escaldada imaginação.
14 Não imaginaria o presidente da Câmara que a
imaginação de Joaquim fosse tão longe. Tampouco suporíamos que sua audácia
fosse tão grande. Para organizar uma incursão ao Forte da Guia a fim de retomar
o patacho, era possível que além de possuir ingerência sobre o tumbeiro, fosse
o próprio Breves o dono da embarcação.
Era comum, durante a ilegalidade, as
embarcações usarem bandeiras falsas para fugir dos cruzadores britânicos.
15 Breves poderia
manter um navio com documentação portuguesa como forma de burlar a repressão.
Ou simplesmente, apenas agenciava o contrabando, sendo responsável pelo
desembarque na costa brasileira. Nessa hipótese, todo o malogro do
empreendimento cairia sobre suas costas e seu bolso. Talvez isso ajude a entender a atitude impulsiva e
audaciosa do então fazendeiro ao organizar uma empreitada, com mais de cem
homens armados, com a finalidade de resgatar o patacho negreiro. É bastante
improvável que Breves estivesse sozinho nessa iniciativa, certamente o prejuízo
da travessia negreira implicaria em perdas econômicas e uma possível
desarticulação de uma cadeia de relações sociais e econômicas estruturada no
espaço Atlântico.
Quase quinze anos após a denúncia da Câmara de Mangaratiba, Joaquim de
Paula Guedes Alcoforado, traficante redimido, era contratado pela legação
inglesa no Rio de Janeiro com a finalidade de elaborar um detalhado relatório
sobre os meandros do comércio ilegal de africanos entre 1831 e 1853.
O Relatório Alcoforado, como ficou conhecido, ratifica os nossos
indícios de que os Breves foram pioneiros na retomada do tráfico em meados da
década de 1830. Além disso, Alcoforado, que também estava a serviço da Polícia
da Corte do Rio de Janeiro, desvenda novos nomes, confirmando a hipótese de um
comércio de família em escala atlântica:
Infelizmente o primeiro ambicioso brasileiro que tratou desse tão infame
como repugnante tráfico foi Joaquim Breves, seu sogro e irmão, lançando mão do aventureiro e degenerado
português João Henrique Ulrich (hoje de grande notabilidade), a quem
mandavam à África com grandes negociações.
16 Joaquim Breves, seu
irmão e o sogro deles, José Gonçalves de Moraes, Barão de Pirahy, empreenderam
um negócio em família que funcionava nas duas margens do Atlântico, gerando
altíssima lucratividade. Além deles, João dos Santos Breves, irmão dos
referidos comendadores, também participara das atividades traficantes. João, ao
que parece, administrava armazéns e entrepostos comerciais de propriedade da
sua família em Mangaratiba.
Poucos sabemos sobre o irmão de José e Joaquim
Breves, no entanto, podemos inferir que João exercia importante função nos
negócios familiares com a costa africana, atuando na organização dos desembarques
em Mangaratiba.
Na África contavam com o agente João Henrique Ulrich para intermediar as negociações no
litoral. Desconhecemos a trajetória de João Ulrich, acreditamos ser um
negociante, como informa Alcoforado, que enriqueceu com o tráfico e fez fortuna
em Portugal. Mas se contavam com os barracões para armazenar os cativos até o
embarque nos tumbeiros, com africanos para abastecer os navios e viabilizar o
empreendimento do tráfico, e com Ulrich para fechar os últimos detalhes comerciais da viagem,
como era a estrutura do desembarque? Quem os esperava? Onde deveriam
desembarcar e aguardar instruções antes de irem para as fazendas? Novamente
Alcoforado nos auxilia na construção das respostas:
Em fins de 1835, o tráfico era grande. Em muitos pontos de nossa costa
se estabeleceram barracões e fazendas apropriadas para se darem este
desembarques de africanos; as
autoridades de terra que tinham ingerência neste negócio eram os Juízes de Paz
que no termo aonde eram feitas estas especulações tinham como paga 10,8% por
cento de cada negro desembarcado [...] Um Joaquim Thomaz de Farias,
patrãomor da Barra de Campos e um marinheiro por nome André Gonçalves da Graça
(hoje ambos Comendadores) trataram de fazer um ponto de desembarque um pouco
mais ao Norte da Barra de Campos lugar denominado Manguinhos; José Bernardino
de Sá e um tal de Veiga ceram próximo a São Sebastião, lugar denominado
Itabatinga;
[...]José Breves em Mangaratiba mais adiante na Ilha da
Marambaia [...] (grifos meus)
As fazendas da Marambaia e de
Santa Rita do Bracuhy estavam entre aquelas propriedades organizadas para
receber os africanos recém-chegados da travessia atlântica no período do
tráfico ilegal.
Após 1830, barracões e
fazendas do litoral recriavam as estruturas outrora destruídas pela lei de 7 de
novembro de 1831.
SEDE DA FAZENDA DE ENGORDA DA MARAMBAIA DOS BREVES
Canoas, barracões para quarentena e
locais de “engorda” conformavam as estruturas de
recepção. Indivíduos especializados em se comunicarem com as diferentes nações
africanas, os chamados línguas, em sua maioria escravos ou exescravos, vinham
nos tumbeiros ou
esperavam em terra a carga humana. Além deles, outros homens transportavam por
terras os “negros novos”
para quarentena ou os
redistribuíam pelas fazendas da região. São esses sujeitos, ainda
desconhecidos pela historiografia, que faziam funcionar o tráfico de africanos
na clandestinidade, dinamizando o funcionamento das fazendas receptoras de
escravos no litoral brasileiro.
O complexo de
fazendas da restinga da Marambaia, de propriedade do comendador Joaquim Breves,
no litoral de Mangaratiba, abrigava algumas daquelas fazendas destinadas à recepção de africanos.
Desde o final
dos anos de 1830, a
restinga funciona
como porto seguro
para a recepção de escravos. Em 1837 a embarcação Bergantim Leão desembarcou 572 africanos,
procedente do Quelimane.
Quase 15 anos depois, em
apenas três meses, entre dezembro
de 1850 e fevereiro de 1851, foram
apreendidos 940 africanos ilegalmente
trazidos para o Brasil e
desembarcados nas águas da Marambaia.
22 Em uma dessas apreensões, realizadas entre os
dias 1 e 2 de Fevereiro de 1851, em incursão à Marambaia, o delegado de Polícia da Corte, Bernardo de Azambuja,
após notificar o comendador, que se encontrava na fazenda, apreendeu espalhados
pela restinga 199 africanos, que estavam escondidos por um escravo ladino pertencente a Joaquim Breves.
Certamente esse cativo era um dos
sujeitos que faziam a estrutura
da Marambaia funcionar como um exímio porto de desembarque de “negros novos”.
Nessa mesma época, 450
africanos foram encontrados em um navio encalhado nas margens da fazenda da
Armação, também na Marambaia em fevereiro de 1851.
Três meses antes, o tumbeiro Jovem Maria
tinha sido flagrado nas
águas da restinga com 291 africanos a bordo. Entre os documentos trazidos pelo navio, as autoridades
encontraram instruções para que os africanos se dirigissem à fazenda Bom
Retiro, na província da Bahia. Coincidentemente, uma das fazendas de Joaquim
Breves tinha o mesmo nome na década de 1860. Não foram poucos os casos
de contrabando de africanos que envolveram, direta ou indiretamente, os irmãos
Souza Breves. Com exceção do
desembarque realizado em 1837 na Marambaia, todos os demais incluíram os
comendadores nos autos de investigação.
Destacamos abaixo apenas aqueles que se confirmaram, deixando de fora
as suspeitas e demais acusações de tráfico ilegal. Entre 1837 e 1852, tivemos a
confirmação de onze desembarques envolvendo os Breves ou suas propriedades, a
grande maioria nas proximidades da Marambaia. Como vimos, os
comendadores foram dos primeiros indivíduos a retomarem o comércio de
africanos, e os últimos a abandoná-lo. Nesse período de 15 anos, desembarcaram nas proximidades
de suas fazendas 4388 africanos.
Considerando que só uma ínfima minoria dos
casos era averiguada e investigada pela Polícia da Corte, na década de 1850, e
pela Auditoria Geral da Marinha, podem supor que esses números fossem muito
maiores. Não é exagero afirmar que os irmãos Breves ajudaram a trazer para o
Brasil milhares de africanos durante a clandestinidade do comércio negreiro, e
que boa parte desses sujeitos foi reduzida ilegalmente ao cativeiro nas
escravarias espalhadas pelas fazendas do Vale do Paraíba. Chama a nossa atenção
que a maioria das viagens começasse no Rio de Janeiro. Do bergantim Leão, que atuava no tráfico em 1837, ao brigue Camargo, último
desembarque confirmado nas propriedades dos Breves, o caminho era semelhante:
Rio de Janeiro – África – Rio de Janeiro.
Na maioria das vezes a finalização se dava na Marambaia. Nos
dois casos citados, ambos os navios partiram do Rio de Janeiro rumo a
Quelimane. Retornaram com mais
de 500 cativos cada um. Além deles, os brigues D. João de Castro e Edelmando fizeram
trajetórias muito semelhantes, o primeiro saindo por duas vezes do Rio de
Janeiro para Moçambique, e o segundo para Ibo, na África Ocidental. 23 Em
outras palavras, boa parte dos traficantes do período ilegal do comércio
negreiro movimentavam suas redes transoceânicas a partir do litoral do Rio de
Janeiro. Também nos impressiona que das seis procedências registradas, cinco
delas relacionavam-se ao litoral de Moçambique. A importância da África
Oriental no período do tráfico ilegal é reconhecida por vários historiadores,
no entanto, ela parece ter sido muito maior do que se tem imaginado. Entre os
onze navios registrados,
quase a metade deles saíra dos portos de Moçambique e Quelimane. Estranhamente,
uma das embarcações catalogadas teve em Ibo, próximo à atual Nigéria, sua
principal praça de aquisição de cativos.
Os 683 africanos embarcados em Ibo chegaram ao litoral sul fluminense
em 1850. Em relação aos demais, não temos informações precisas sobre a
procedência. Entretanto, pelos escravos apreendidos no iate Jovem Maria, no patacho Atividade, e na
embarcação que trouxe 199 africanos para a Marambaia em 1850,acreditamos que
estes embarques tenham se dado na costa central-atlântica africana,
provavelmente nos portos ao norte de Luanda. 25 Entre as bandeiras dos navios,
a maior parte era portuguesa ou brasileira. Sobre as tripulações temos poucas
informações, com exceção do iate Jovem Maria e do brigue Camargo. Nessas
embarcações a composição da tripulação variava, em sua maioria, entre
portugueses, espanhóis, norte-americanos e ingleses, embora também
encontrássemos a presença de brasileiros e de indivíduos de diferentes partes
da África. O comércio negreiro mantinha seu caráter transoceânico, tanto para
aqueles que o financiavam, como para os indivíduos que o executavam. Oito,
entre os onze desembarques ocorreram na Marambaia. A restinga concentrava a
finalização do empreendimento traficante desde pelo menos 1837. Duas
embarcações atracaram nesse mesmo litoral, uma também em 1837, em Mangaratiba,
e a outra em Angra dos Reis, na fazenda de Santa Rita do Bracuí, quinze anos
depois. Nos dois casos encontramos o envolvimento direto dos comendadores
Joaquim e José Breves. Em mais um dos desembarques ocorridos fora da Marambaia,
nos deparamos com a presença ilustre de Joaquim Breves. Em 1851 era ele o
proprietário do brigue Destro, que desembarcou 457 africanos no Rio de Janeiro.
Nesse caso, com seu próprio tumbeiro, Breves não utilizou suas fazendas
litorâneas para finalização do empreendimento. Optou por atracar o brigue em
outra parte do litoral fluminense, fugindo da visada restinga de sua
propriedade. Outros senhores também figuraram como proprietários de tumbeiros
atracados na Marambaia de Breves. Entre eles, Antônio Brás dos Réis, Vitor
Manoel Paneto e Francisco da Costa Ramos. Aquele dono do brigue D. João de
Castro, capturado duas vezes pelos britânicos em 1839. No primeiro caso, o
tumbeiro desembarcou 450 cativos no litoral da Marambaia, já na segunda viagem
444 africanos foram levados da restinga do comendador para as fazendas do Vale
do Paraíba. 26 Vitor Panedo e Francisco Ramos eram proprietários do Jovem
Maria e do Edelmando, apreendidos na mesma restinga em 1850. Joaquim Breves
centralizava na Marambaia a última fase do empreendimento traficante. Mais da
metade dos desembarques registrados ocorreram após 1850. Os demais se deram nos
anos de 1837 e 1839. Não há nenhuma evidência de navios capturados na década de
1840.27 Não acreditamos que a Marambaia, o Bracuhy, e outras regiões do litoral
sul fluminense tenham deixado de receber africanos ilegalmente durante aqueles
anos. Mais provável é que o Império tenha sido bastante permissivo em relação
ao tráfico nas fazendas afastadas da Corte. O domínio político conservador,
após a maioridade de d. Pedro II, assegurava não só o monopólio do tráfico para
os seus pares, como também adiava para o início da década seguinte a perseguição
aos tumbeiros e aos desembarques realizados ao longo da costa brasileira.28
Além disso, boa parte dos escravos traficados morreu a caminho do cativeiro no
Brasil. Os avanços tecnológicos dos negreiros nem sempre garantiam uma redução
significativa da taxa de mortalidade. Por exemplo, o tumbeiro bergantim Leão,
perdeu 33,1 % dos seus cativos em 1837. Quatorze anos depois, o brigue Destro,
de propriedade de Joaquim Breves, amargou um prejuízo significativo, com a
morte de 30,4 % dos escravos a bordo. Embora essas taxas sejam bastante altas,
elas não correspondem à totalidade dos desembarques. Nos casos analisados, as
taxas oscilam bastante. Exemplo disso é que em 1839, nas duas viagens do brigue
D. João de Castro, a taxa de mortalidade girava em torno de 10%, praticamente a
mesma do brigue americano Camargo, que registrou mortalidade em torno 9,1% em
1852. Essas variáveis não eram fixas, e se relacionavam tanto com o itinerário
das viagens e seus portos de origem, quanto com a finalização do empreendimento.
A própria lógica de maximização dos lucros de alguns traficantes, que
abarrotavam os tumbeiros com centenas de africanos, aumentava
significativamente esses índices. Emblemático, nesse sentido, é o caso do
bergantim Leão que embarcou 855 africanos em 1837 e, ao mesmo tempo, amargou a
maior taxa de mortalidade entre as embarcações registradas.
Os novos portos de chegada: a fazenda de Santa Rita do Brachuy e o
complexo da Marambaia
Não restam dúvidas de que as fazendas litorâneas dos comendadores eram
estruturadas para recepção de africanos recém-chegados da travessia atlântica.
Algumas delas, além de possuírem uma estrutura para o desembarque de africanos,
tinham se organizado produtivamente para o empreendimento negreiro. É o caso da
Fazenda Santa Rita do Bracuhy, de propriedade de José Breves, adquirida por
compra em 30 de maio de 1829.29 Na avaliação do espólio do comendador José de
Souza Breves, encontramos onze fazendas, duas delas no litoral sul fluminense,
na extinta freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Ribeira, em Angra dos
Reis, eram elas: Santa Rita do Bracuhy e a pequena fazenda de Jurumirim.30 Em
1881 ambas foram avaliadas, e o que nos chama atenção é o estado de abandono em
que se encontravam. Enquanto nas outras propriedades inúmeros escravos foram
listados, diversos bens avaliados, entre imóveis e semoventes, as duas
propriedades do litoral parecem abandonadas à sorte dos cativos que anos depois
receberiam em testamento a posse e o usufruto daquelas terras. Em 1881, a
fazenda do Bracuhy contava com dois mil seiscentos e quarenta metros de terras
de frente, e fundos “até a mais alta serra do mar”, avaliados em dois mil réis
cada metro, totalizando cinco contos e duzentos mil réis. Entre as benfeitorias
da fazenda, encontramos uma casa de vivenda bastante estragada, dois lances de
casas que serviam como paiol, além de uma casa com rancho ao lado para guardar
canoas. As edificações estavam em ruínas no início dos anos de 1880. Ao que nos
parece há tempos não se produzia em Santa Rita. Encontramos
na fazenda apenas vinte enxadas, dez foices e dois machados de
serviço de roça, tudo avaliado em míseros oito mil réis. Além disso, havia um
pequeno canavial, um pomar e alguns cafezais, que somados não chegavam a meio
conto de réis. O que realmente encarecia a fazenda era sua antiga estrutura de
produção de aguardente, que nessa época também estava em decadência, como nos
mostra a avaliação feita em 1881. Dessas benfeitorias existiam quatro carros de
bois, próprios para condução de cana, que somado aos semoventes, trinta e seis
bois de carro, chegavam há um conto cento e sessenta mil réis. Isoladamente, o
bem mais valioso da antiga fazenda era uma casa de telha, com engenho, moendas,
alambique, tonéis e outros elementos para a produção de cachaça, tudo visto e
avaliado em um conto de reis. Somando o engenho, com os carros de bois e seus
respectivos semoventes, destinados ao transporte da cana e seus derivados,
chegamos a quase 50% do valor de referência da propriedade. Isso demonstra que,
nas décadas anteriores, a estrutura produtiva de Santa Rita estava voltada para
produção de aguardente. Como demonstrou Roquinaldo Ferreira, a geribita,
conhecida popularmente como cachaça, era uma das mercadorias mais valorizadas
no comércio de escravos no interior do continente africano. 31 Nesse sentido, a
família Breves mostrava-se bastante conectada com as preferências dos
mercadores africanos. Produzindo geribita atendiam às demandas do tráfico,
multiplicando os desembarques de africanos no litoral brasileiro. Provavelmente
João Henrique Ulrich, agente dos Souza Breves em África, comercializava a
aguardente do Bracuhy e de outras fazendas litorâneas dos Breves na margem
africana do Atlântico. Somado a decadência da fazenda analisada, encontramos
uma pequena propriedade denominada Jurumirim, no lugar de mesmo
nome formada em sua maior parte por 528 metros de terras na Ilha da Barra,
também na Freguesia da Ribeira. A descrição no inventário é muito sucinta,
demonstrando que havia apenas terras e poucas construções, praticamente
abandonadas. Além dela, José possuía também uma faixa de terra denominada Ilha
Comprida, próxima a Mambucaba. O comendador deixara a ilha para usufruto dos
pescadores que nela viviam e dos próprios moradores de Santa Rita. 32 Na
segunda metade do século XIX, enquanto o Vale do Paraíba ainda arrecadava os
altíssimos lucros do comércio de café, o litoral sul da província parecia
padecer em um crescente abandono. Certamente o fim do tráfico de africanos, nos
primeiros anos da década de 1850, afetou em curto prazo a região que se
especializara, no período imediatamente anterior, na recepção de negros vindos
das mais diferentes regiões da África. Entre os domínios litorâneos dos
comendadores, a Marambaia configurava-se como a principal porta de entrada de
milhares de africanos reduzidos ilegalmente à escravidão. Ligação entre o
litoral de Mangaratiba e a imensidão do Atlântico, a restinga se tornara um
porto seguro para o desembarque de africanos desde o final da década de 1830.
No entanto, em meados do século XIX, o comércio clandestino passaria a ser tão
frequente que mesmo o proprietário da restinga admitia as ocorrências dos
desembarques. A Marambaia foi comprada de Guedes e Irmão em 17 de abril de
1847.33 A avaliação da fazenda, em 1890, demonstra que há tempos aquela
propriedade estava abandonada e improdutiva. Entre os três primeiros dias do
mês de setembro, os avaliadores juramentados no processo descreveram
minuciosamente a restinga. Logo de início, observamos que o complexo da
Marambaia era bem mais estruturado do que o de Santa Rita, principalmente pelo
número de construções, móveis e canoas. No entanto, ao analisarmos mais
detidamente a documentação, percebemos que o abandono na Marambaia era muito
semelhante ao do Bracuhy, inventariado dez anos antes no espólio de José
Breves. Na descrição das casas e de alguns móveis observarmos o uso, com
frequência, de expressões que denotam esse abandono. Construções em mau estado,
ou em ruínas, reincidentemente aparecem nas falas dos avaliadores. Outra particularidade
da Marambaia era o complexo de propriedades que a compunha. A fazenda da
Armação parecia ser a principal delas. Lá estava o bem mais valioso
inventariado: “uma casa de vivenda, comprida com varanda, na frente
envidraçado, na fazenda denominada Armação, assoalhada e forrada, com diversos
quartos e salas e cozinha e outras dependências, parte em bom estado e parte em
mau estado, visto e avaliada por dois Contos de Réis – 2:000$000”. 35 Até mesmo
o bem mais valioso da Marambaia estava se deteriorando, aparentemente
abandonado no final do século XIX. Era na Armação que se encontravam
importantes construções do recente passado escravista, como a casa de vivenda
que servira outrora de hospital avaliada em 250$000 réis. Além dela, mais
outras cinco construções pareciam seguir o mesmo caminho, servindo de abrigo
pra gados, cavalos e chiqueiros para os porcos. Segundo consta no auto de
avaliação da propriedade, os chiqueiros estavam ao lado da antiga enfermaria,
evidenciando uma reestruturação do espaço após a Abolição da escravidão.
Reorganização semelhante deve ter ocorrido com o fim do tráfico de africanos,
finalidade específica das propriedades da restinga da Marambaia. A cerca de uma
légua da Armação encontramos a fazenda da Serra d’Água, composta de duas casas
erguidas sobre pilares de pedra, e uma capela de Nossa Senhora da Conceição
construída em 1851. As duas casas, assim com as anteriores, se encontravam em
ruínas. Além das fazendas, Joaquim Breves mantinha três ilhas em frente à
restinga: Saracura, Bernarda e Papagaio fechavam o complexo da Marambaia.
Certamente a ilha do Papagaio era a menor delas, apreçada em um terço (50$000
Réis) do valor das demais. No entanto, o que enriquecia o espólio deixado pelo
comendador era a imensa restinga, descrita como ilha da Marambaia, avaliada em
duzentos e noventa e cinco contos de réis (295:000$000), em 3 de setembro de
1890. O valor do complexo da Marambaia era 59 vezes maior do que a fazenda do
seu falecido irmão no mesmo litoral. Apesar de toda a vastidão da restinga, o
abandono sócio-produtivo era a marca das antigas propriedades do litoral sul
fluminense, não só no final da década de 1880, mas a partir do início da
segunda metade do século XIX. Esse processo ficou evidente a partir da
avaliação da antiga fazenda de Santa Rita, mas se torna muito mais claro ao
analisarmos as benfeitorias da Marambaia. Em 1890, tanto na fazenda da Armação,
quanto na Serra d’Água, as únicas plantações existentes eram os mil pés de
coqueiros da Bahia, espalhados pelas referidas propriedades e avaliados em mil
réis cada um. Ao longo de toda avaliação, há apenas uma referência indireta às
antigas culturas agrícolas, exatamente no momento em que se avaliava um antigo
engenho na praia da Armação para secagem dos grãos de café. Pela quantidade de
coqueiros, e inexistência de qualquer outra cultura que ao menos valesse a pena
ser inventariada, supomos que há tempos a Marambaia fosse uma daquelas
propriedades sem finalidade específica após o fim do tráfico de africanos.
Restaram aos herdeiros da Marambaia, além das construções em ruínas, alguns
animais, móveis e canoas. Da antiga casa do comendador, sobraram apenas mesas e
cadeiras em mau estado, dois pianos e uma canoa grande de Jequitibá, certamente
usada no transporte entre Mangaratiba e a restinga. No dia 4 de setembro, o
juiz do caso e os avaliadores juramentados deixaram a Marambaia, seguindo para
o Saco de Mangaratiba, onde em apenas um dia inventariaram as construções em
ruínas e uma chácara nessa mesma praia. Reminiscências de uma época marcada
pelos altos lucros da exportação do café e pela ilegalidade do tráfico
internacional de africanos. É intrigante perceber o abandono e a decadência
dessas fazendas do litoral sul fluminense, em contraponto com a opulência das
demais propriedades da família Breves no Vale do Paraíba no final da década de
1870. A Lei de 1850, que ratificava a ilegalidade do tráfico e dia as
responsabilidades sobre o ilícito comércio, 36 parece ter mudado, em curto
prazo, a paisagem social das fazendas do litoral. O fim do tráfico de
africanos, gradativamente construído na primeira metade da década de 1850,
alterou profundamente a rotina das fazendas do sul da província do Rio de
Janeiro. As estruturas do tráfico clandestino deveriam ser desmontadas, ou
simplesmente abandonadas, e as fazendas que as englobavam, reestruturadas, ou
deixadas a cargo dos seus moradores, em sua maioria escravos e libertos. Esse
parece ter sido o destino da Fazenda de Santa Rita do Bracuhy e do complexo da
Marambaia, logo após o fim do tráfico atlântico de escravos. Talvez, por isso,
os que permaneceram na restinga tenham suas identidades relacionadas
diretamente às antigas histórias dos últimos desembarques de africanos,
possivelmente vivenciadas, direta ou indiretamente, por seus pais e avós. Ao
encontrar os que permaneceram na Marambaia, Assis Chateaubriand, registrou o
que disseram os últimos ex-escravos do comendador em 1927. Chateaubriand
conversou com Adriano Júnior e Gustavo Victor. Adriano havia trabalhado na
fazenda S. Joaquim da Grama, e tinha aproximadamente 75 anos. Chateaubriand não
precisara a idade de Gustavo, no entanto, disse aparentar ser mais velho que
Adriano. Ao perguntar àquele sobre seu antigo senhor, Gustavo foi direto ao
relacionar a restinga ao comércio de africanos: “Gente vinha de bahia d´Angola
premero pra qui. Engordava, e depois ia pra roça, trabaiá no cafezá”. Sobre seu
antigo senhor, lembrava o seguinte: “Era um veio bão. Quando via nego
assentado, depois do serviço, apreguntava se nego tava triste, e mandava reunir
a senzala para dançar o cateretê e o batuque, fazendo tocar o bumba de
barriga”. O tráfico na Marambaia se confundia com a própria trajetória
dos antigos escravos. Da conformação das fazendas, aos indivíduos que lá
permaneceram, o infame comércio parecia atribuir sentido para a história
daquela restinga, na interseção entre passado e presente. Certamente Gustavo e
Adriano teriam muito mais a contar a Chateaubriand, faltou-lhe apenas o
registro, ou um pouco do espírito do historiador.
Um retrato da ilegalidade: os últimos africanos do comendador através
dos registros de óbitos
Não há consenso na discussão do quantitativo de escravos sob o domínio
de Joaquim Breves. Nos trabalhos historiográficos seus números giram em torno
de 4.000 a 6.000 cativos. 38 Ao certo, nunca saberemos o número exato de homens
e mulheres que conformavam suas fazendas. No entanto, parece bastante evidente
que uma das maiores, senão a maior, escravaria do Brasil Império, tenha sido
construída na ilegalidade, após a Lei de 7 de novembro de 1831. Não será nosso
objetivo aqui comprovar tal afirmação, trataremos apenas de estabelecer uma
breve relação entre os escravos de Joaquim Breves e o tráfico ilegal de
africanos. Para isso, nos basearemos nos óbitos dos cativos de Joaquim, ocorridos
entre 1865 e 1875, e registrados por um de seus funcionários. Devemos enfatizar
que o livro citado não se refere à típica documentação eclesiástica analisada
em outros trabalhos acadêmicos. Os registros, de nascimento ao óbito, embora
fossem de responsabilidade da Igreja, passavam também pelo controle senhorial.
Stanley Stein, citando o inventário do Barão de Tinguá, enfatiza que
Entre os fazendeiros diligentes era uma prática catalogar [...] num
livro de registros os nomes de escravos homens e mulheres, assim como seus
filhos [...] e os nomes daqueles que morreram e daqueles [...] libertados
quando batizados.
Segundo a visão do Barão, Joaquim estaria no rol dos
diligentes fazendeiros, já que construiu um registro interno de suas
fazendas com os nascimentos, batismos, casamentos e óbitos de seus escravos e
agregados livres, dispostos ao longo de suas propriedades. Além desse livro,
encontramos também algumas folhas soltas organizadas em um fichário com
nascimentos, casamentos e batismos de cativos, libertos e livres das antigas
fazendas de Joaquim Breves entre 1876 e 1901. Chama-nos a atenção o fato de que
o fichário se diferencie bastante do livro citado. Enquanto este parece ter
sido organizado por uma única pessoa que dispôs as informações de maneira muito
objetiva, agrupando os dados em tabelas, quase sempre num tom quantitativo,
aquele se assemelha mais aos tradicionais assentos eclesiásticos. Embora os
documentos não apareçam em ordem, e não tenham sido escritos pela mesma pessoa,
trazem ainda o nome do padre e o local de registro, quase sempre a fazenda de
São Joaquim da Grama. Os registros que compõe o fichário, organizado
posteriormente, foram produzidos naquela fazenda. É bastante provável que o
livro analisado também tenha sido construído na propriedade sede de Joaquim
Breves. Ambos compunham o rol dos documentos da administração das fazendas da
família Breves. É importante destacar o perfil das fontes citadas, sobretudo,
por se tratarem de documentos praticamente inexistentes nos arquivos brasileiros.
40 Os registros de óbitos presentes no livro citado, embora aparentemente
escritos por uma única pessoa, apresentam também algumas nuances. Em geral o
nome, a idade, a nação e a moléstia, indicando a causa da morte, aparecem com
regularidade. Só em 1875, encontramos o campo cor nos óbitos, nesses casos
referem-se a 13 inocentes pretos, falecidos na fazenda de São Joaquim da Grama.
Em decorrência da Lei de 28 de setembro de 1871, a partir do ano seguinte, os
cativos já começam a aparecer com seu número de matrícula. Além disso, a
referência ao estado civil, se casado, solteiro ou viúvo, surge ao lado de uma
observação que geralmente se remete à filiação. Em poucos casos encontramos
mais informações sobre a profissão dos escravos. Os de roça nunca têm a
profissão citada, destaca-se apenas, muito raramente, a atividade de alguns
cativos,,,,,,,,
Com o fim da escravidão, ex-escravos e seus descendentes
permaneceram no local, ocupando a terra de forma tradicional e trabalhando
como pescadores artesanais. Na década de 1970, a
ilha passou a ser usada como área de treinamento pelos fuzileiros navais, tendo
surgido, a partir daí, os conflitos fundiários e a batalha judicial
em torno da posse da ilha.
A ilha passou
para a Marinha
do Brasil em 1908 e, nela, foi instalada a Escola de Aprendizes-Marinheiros
em 16 de junho de 1908. Desde então, é utilizada ainda para exercícios
militares e experimentos de armamentos (principalmente pelo Corpo
de Fuzileiros Navais). Desde 1981, funciona, lá, o Centro de Adestramento da Ilha
da Marambaia (CADIM).
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